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Tratado geral sobre os banheiros


18/09/2017   publicado por: edeas

Rogério Santos Braga
Tratado geral sobre os banheiros

Preâmbulo
Eis aqui uma breve leitura cuja proposta explícita logo no título é deveras pretensiosa. Sim, pretensiosa, pois seriam necessários vários anos de estudo e pesquisa, uma vontade gigantesca e inabalável e também enorme capacidade intelectual para falar de assunto tão vasto e complexo que são os banheiros.

Gostaria de começar colocando a pergunta chave bastante capciosa: o que é o banheiro? (Reflitam bastante sobre essa questão, que eu tentarei nessas “mal traçadas linhas” colocar minha sintética opinião sobre esse recinto tão freqüentemente incompreendido e injustiçado.)

Resposta prolixa, racional e por conseguinte, indesejável: Os banheiros são locais abrigados (ou não) onde os seres humanos (ou não) realizam suas atividades diárias de higiene e suas necessidades fisiológicas “líquidas” ou “sólidas”. Como podemos perceber, essa definição está bastante aquém das reais funções e significados que o banheiro assume no imaginário popular. Essa resposta trata do assunto através de uma perspectiva positivista e excessivamente sintética.

Não tentarei de maneira alguma colocar uma definição desse recinto peculiar. Tentarei sim, enumerar diversas funções, tipologias, significados e a verdadeira importância do banheiro para a existência humana.

Podemos enumerar vários tipos de banheiro, desde o mais simples e rudimentar até o mais sofisticado. O primeiro, encontramo-lo com mais freqüência no campo; às vezes (infelizmente) encontramo-lo também na cidade. Resume-se a um buraco no chão ladeado por palhas de coqueiro ou carnaúba. O segundo tipo mencionado é acessível certamente apenas à elite. Diferente daquele este poderá estar equipado com acessórios folheados a ouro, água quente, banheira de hidromassagem, área útil de vários metros quadrados. Enfim, todos os luxos e acessórios que o dinheiro pode comprar. Entre esses extremos há infinitas variações. O famoso lavabo (“lavábulo”, segundo algumas dondocas iletradas no ato de comentar um projeto de ambientação caríssimo da famosa arquiteta Neuzinha Reutmann.) que seria uma espécie de mini-banheiro onde não há chuveiro. O lavabo é, geralmente, um diminuto espaço onde são utilizadas apenas as atividades de toalete. Há ainda o singular banheiro da empregada em alguns apartamentos. Uma expressão espacial gritante do apartheid social. Enquanto o lavabo da madame tem louças caríssimas, ferragens requintadas, armários projetados, sancas de gesso e iluminação especial, o da serviçal; bem, na verdade, a operária do lar faz verdadeiros malabarismos e contorcionismos para fazer uso desse espaço. A latrina fica embaixo do chuveiro, e a pia, a menor possível, geralmente dificulta a abertura da porta. É impossível tomar banho ali sem inundar “toda” (é piada?) a minúscula área. Um colega arquiteto com inclinações premonitórias para as “tendências” futuras fez uma previsão sombria. O projetista-vidente disse que, no ritmo atual das coisas, em breve projetariam um quarto-sarcófago de empregada. As serviçais dormiriam em versões contemporâneas dos sarcófagos verticais dos antigos filmes de terror. Você abriria a tampa do armário-sarcófago-aposento e elas sairiam com aquele ar misterioso e sonâmbulo para os afazeres domésticos. E o banheiro? Perguntei. Ah! E precisa mesmo de banheiro? (…)

Temos os banheiros públicos, escassos em nossa cidade. Há o tradicional e nauseabundo “banheiro de posto de gasolina de beira de estrada”, cujo forte concorrente no item “imundície levada às últimas conseqüências” é o banheiro de botequim. Podemos encontrar esse modelo de banheiro no filme “Trainspotting”, estrelado pelo atual jovem Obi-Wan: Ewan Mcgregor. Há nesse filme uma antológica e belíssima cena. O jovem drogado vai vomitar e entra de cabeça no vaso sanitário; que, na verdade é apenas a entrada de um plácido e pútrido lago. Ele então nada e vaga pelo grotesco ambiente sub-aquático. Um bucólico mar de merda. Lindo, não acham?

Certos banheiros têm como característica inerente a sua subjetiva inacessibilidade. Exemplar desse tipo seria o banheiro da casa da(o) nova(o) namorada(o)… Há diversos tipos de banheiros e não vou me deter apenas em enumerá-los e catalogá-los. Até porque não quero trabalhar durante anos e anos em árdua pesquisa, que certamente jamais seria verdadeiramente reconhecida e apreciada.

Já repararam como várias pessoas extravasam suas alegrias fugazes e cotidianas no simples e difundido ato de cantar no banheiro? Por que será que nós fazemos isso preferencialmente no banheiro? Ora, porque esse recinto, geralmente, tem suas paredes cobertas com revestimentos litocerâmicos por uma questão de impermeabilização. Soma-se isso ao fato de ser um ambiente fechado de, usualmente, dimensões exíguas. Esses fatores somados acabam por determinar um ambiente com ótimas qualidades acústicas; qualquer um se sente um verdadeiro Pavarotti no W.C.. É extremamente válido abrir um parêntese nesse momento. Essa descoberta não é minha, devo admitir, está no vasto trabalho do erudito alemão Werther Caggon, “De rhea defecatorium”. Devido a seus esforços de toda uma vida, os banheiros na Alemanha começaram a ser denominados de w.c. Daí o nome foi difundido em todo o mundo. A difusão da abreviatura também se deve ao monopólio da empresa alemã do erudito no começo do século XX. A empresa exportava lavatórios, vasos sanitários e bidês para todo o mundo. As grandes iniciais W.C. eram vistas em banheiros em todo o mundo. Das caixas dos acessórios sanitários às portas dos mesmos foi uma conseqüência natural.

Quando era menino de calças curtas minha mui amada progenitora costumava dar-me chineladas na mão e colocava-me de castigo trancado no banheiro. Sempre, lógico, por ocasião de alguma “arte” realizada (Sempre tive uma certa vocação artística) Por que isso? Será que meu cárcere era um local tão desprezível assim? Para uma criança, certamente que sim. Hoje tenho minhas dúvidas.

As dependências do banheiro já inspiraram famosos escritores a presentear-nos com imagens e trechos belíssimos tendo o lugar como cenário das ações das personagens. Como exemplo eu posso citar esse trecho de Júlio Cortazar no livro “O jogo da amarelinha”.

Quando acordamos, com os restos do paraíso entrevisto em sonhos, e que agora estão pendurados como o cabelo de um afogado: uma náusea terrível, ansiedade, sentimento do precário, do falso, sobretudo do inútil. Caímos para dentro, enquanto escovamos os dentes somos verdadeiramente um búzio de lavabo, é com se fôssemos absorvidos pela pia branca, como se deslizássemos por aquele buraco que leva o sarro, os catarros, os escarros, a caspa, a saliva, e deixamo-nos deslizar com a esperança de que talvez possamos voltar ao outro, àquilo que éramos antes de acordar, e que ainda está flutuando, mas que já começa a ir embora… Sim, caímos por um momento para dentro, até que as defesas da vigília, oh, que bela expressão, oh, que linguagem, encarregam-se de nos deter.

Começa agora a minha “defesa do banheiro”! Além das funções mencionadas na definição óbvia e racional do local “estudado”; por ser um local fechado, com um certo isolamento acústico (que filtra flatulências e distúrbios intestinais literalmente gritantes…) o banheiro é um espaço único de privacidade. Temos uma liberdade ímpar nesse local; e liberdade esta, muitas vezes não reconhecida e não usufruída. Nele podemos chorar baixinho, livrando-nos um pouco do amargor da “desgostosidão”. (neologismo formado pela junção das palavras desgosto e solidão) Podemos fazer caras e bocas, caretas e coisas do gênero. O exercício do narcisismo pode também ser feito aqui. Admira-te, olha-te de cima a baixo. Encontra defeitos e ria deles. Limpa o “salão”. (Vai ter festa?) Isso mesmo, tire meleca do nariz.

Além dessas frugais atividades podemos também praticar alguns pequenos delitos; como uma “condenável” (partindo de pressupostos dogmáticos católicos) atividade “onanística”, que, certamente, entre adolescentes, tem como locus preferencial, o banheiro. Este também pode se tornar palco de atividades libidinosas não somente solitárias, mas também a dois…

Os japoneses inventaram um aparelho que é o must do conforto que a tecnologia pode oferecer em matéria de banheiro. O sujeito senta nessa “latrina high-tech” faz o que tem que fazer e ao acabar recebe um esguicho de água em sua região glútea, seguido por uma corrente de ar quente. Levanta e sai limpinho e sequinho, novo em folha, aliviado e feliz com seu ânus higienizado. Imagino que seja uma nova concepção engenhosa, tipo um “up-grade” dos bidês. Esse mesmo banheiro ainda tem um eficientíssimo sistema mecânico de exaustão de gases e odores. Conheci uma amiga que depois de defecar costumava derrubar dentro do vaso grande quantidade do perfume Seiva de alfazema, e isso depois, ainda, de umas duas ou três descargas. (Exagerada? Excessivamente precavida?) E contava isso para todo mundo, rindo. Achava lindo. Ela economizaria perfume nesse w.c. japonês. Vem aí o banheiro do século XXI! Prevejo a falência das fábricas de papel higiênico…

Esse tratado poderia ir longe, mas para não correr o risco de torná-lo muito sério, profundo e/ou chato não me deterei mais em sua redação. Gostaria apenas que nós, arquitetos (eu adoro dizer isso!) déssemos mais importância a esse recinto em nossos projetos, para que tratemos com mais carinho esse lugar que na maioria das vezes surge como uma adição e não como parte integrante do projeto. Portanto, espero que meu pretensioso “Tratado geral sobre os banheiros” tenha um alcance maior do que o obscuro estudo do grande estudioso alemão Caggon.